Em 1994 iniciei-me oficialmente para o mundo do Benfica. Ia ver, finalmente,
um jogo ao Estádio da Luz. Pus o fato de gala: camisola marca “Imperia”, símbolo
do Glorioso no coração, Casino Estoril a apertar a barriga. Jogo
importantíssimo, 29ª jornada, uma semana antes do 6-3 que praticamente selou o
título. O adversário era o Estrela da Amadora.
Não sei bem o que se passou desde que o meu pai me disse que íamos à bola até
estar dentro do Estádio. Sei que, de repente, estava sentado na Catedral, ainda
despida de cadeiras e sem o fosso cavado em 95 para proteger os Paredões, Kings
e Marcelos do assédio dos comuns mortais que se sentavam nas bancadas.
Passei à minha primeira análise do Estádio da Luz. Do banco dos suplentes,
com marcação à zona feita pelo bigode do Toni, até ao camarote, onde devia estar
o Eusébio, a chorar ainda a meia-final contra a Inglaterra e a derrota de 1968.
Na altura conhecia poucos jogadores, e para mim o mais distinto era o Veloso,
que tinha um bigode que não era como o do Toni, era mais senhorial, e que eu
reconheceria em qualquer parte do mundo, mas que reconhecia principalmente da
caderneta Panini que recebera na semana anterior, onde o Capitão partilhava a
capa com um jogador do Porto.
Ainda me lembro do que foi o palavrão. Nunca tinha ouvido nada assim, foi o meu
primeiro contacto com o vernáculo do futebol. Caralhadas e filhas da putice,
foda-ses e conas da mãe do outro. Lembro-me de olhar para o meu pai à espera de
um grito para o gajo do lado por estar a ser mal-educado, ou de uma reprimenda
na gorda que se sentava acima de nós, e que a cada lance mais emocionante,
cuspia para cima de nós bocados de queijada mastigados e léxico vindo dos
confins do dicionário. Um pouco de contenção era o que se pedia, havia crianças
presentes. O meu pai não fez nada, continuava concentrado no jogo, e eu devo-me ter perguntado se os pais da
gorda saberiam que ela falava assim, e se o gajo do lado, que já tinha idade
para ser meu avô, embalava os netos à noite dizendo que os vilões das histórias
eram uns grandes filhos da puta.
O jogo já começara e eu ainda não absorvera tudo o que se passava à minha
volta. É provável que estivesse a tentar decifrar os
ponteiros do relógio do marcador quando fui interrompido por um tremor de terra
humano. Olhei à minha volta e vi os homens e mulheres, que ainda há pouco
gritavam palavrões, aos gritos, aos abraços e aos saltos. Até o meu pai perdera
a compostura. Só quando me pôs ao colo é que percebi que tinha perdido o
primeiro golo da minha vida. O Isaías marcara, e eu, que tanto massacrara o meu
pai para me levar a um jogo, deixara passar a oportunidade em claro. O golo fora
assim, à socapa, sem dar oportunidade a um miúdo que nunca tinha visto nada
daquilo e não sabia que o futebol é muito mais do que o que nos mostrava a
televisão, onde há a complacência da repetição para os distraídos.
Tinha que estar mais atento. Concentrei-me, não podia perder o próximo.
Chegou o empate do Estrela, esse vi eu, mas as ninguém reagiu como no golo do
Benfica. As pessoas ficaram caladas, a olhar para os sapatos, algumas
assobiaram, não percebi bem o quê – na altura Emerson ainda não jogava e Roberto
era um pesadelo distante. O meu pai devia estar preocupado, já a fazer contas à
vida - para a semana lá íamos ter de ganhar em Alvalade. Não marcámos mais
vezes, para meu desapontamento. O Benfica empatou, e eu nunca mais vi esse golo
do Isaías.
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