18/09/2012

O meu Benfica

O ritual de entrada no Velhinho era cumprido em silêncio sepulcral. O cortejo subia pela Rua Soeiro, e estacionava geralmente na João Hogan. Seguia pelas escadas que iam dar à Catedral, ao princípio despida adornos, depois enfeitada com cadeiras que desenhavam os símbolos e nomes dos patrocinadores – Parmalat, Telecel. Quatro grandes torres de betão iluminavam o altar, alimentadas pela Shell.

A minha fé estava lá, sustentada pelas homilias de João Pinto e Preud’homme, pontualmente assistidos por um ou outro acólito que, durante umas épocas ou apenas alguns meses, aparecia para auxiliar à missa – Caniggia, Gamarra, Nuno Gomes, Enke, Van Hooijdonk. Os objectos de culto que mantinham a minha crença apareciam sob formato VHS - Eusébio, um Jogador de todos os Tempos; mensalmente, revestiam suporte de papel, por meio da revista do Clube, que apresentava Totes, Okunowos e Mawetes Juniores como novos profetas de uma instituição religiosa decadente; relíquias eram também as memórias do meu pai, benfiquista de família de sportinguistas, nascido para a Luz pelos golos de Eusébio, raptado para o Terceiro Anel por Coluna, José Águas, Torres.

O meu pai, depois de anos de fanatismo benfiquista que calcorreara o País e a Europa, perdera a fé. Era um agnóstico, que, de vez em quando, me levava a conhecer o templo que lhe fizera a juventude tão feliz. Era, digamos, uma religiosidade não-praticante. Em 1994, antecipou o que iria acontecer. Ainda assisti à última festa que o Gigante de Betão recebeu, a celebração do título à tarde. A partir daí, cada domingo que albergava jogo na Luz era motivo de birras e choradeira – o meu pai recusava-se a levar-me a ir ver aquela equipa moribunda, que usava as mesmas cores e símbolos que Eusébio, Coluna, Humberto, Veloso. Às vezes, o meu pai ia sozinho. Talvez me quisesse poupar, talvez quisesse manter a minha fé cristalizada na cassete do Eusébio e nas tardes de glória que baseavam as histórias que me contava – golos, títulos, jogos fantásticos, viagens. Talvez esperasse que, com tão poucas cerimónias na Luz, eu me desligasse - hipótese menos plausível, mas que me ocorreu algumas vezes.

A verdade é que nunca desconectei a ficha do Benfica. Essa cassete, essas histórias – a revista, entretanto, deixara de ser publicada -, municiavam a minha imaginação, que corria louca à procura de mais um golo, de mais uma jogada, fosse no leitor de vídeo fosse nos recônditos das lembranças do meu pai. “O Chalana era bom, pai?”, perguntava, “O Chalana era 10 vezes o Simão”, “o Bento foi o melhor guarda-redes que vi jogar, um gigante sem medo de nada”, “o Humberto transbordava classe”. Lembro-me de pensar, vezes sem conta, que se o Eusébio tivesse rematado para o outro lado no final do jogo com o Manchester United, em 1968, o Benfica teria sido campeão europeu – um lance que revi até mais não, numa fita já gasta pelos constantes rewinds. Ainda assim, a imagem do Eusébio a felicitar Stepney pela enorme defesa era uma demonstração do que era o Benfica, e do que era a postura que um homem devia manter em momentos decisivos que não correm bem, na certeza de que se fez tudo para ganhar.

Talvez não seja normal, no século XXI, buscar constantemente benfiquismo num estádio que já não existe, numa cassete que fala de coisas de há 50 anos, em histórias que não vivi e em jogadores que não vi jogar. Hoje, pouco me lembra esse Benfica que não conheci na primeira pessoa, mas que conheço como se tivesse festejado os golos de Eusébio, presenciado a galhardia de José Águas, vibrado com as defesas de Bento.

Felizmente há Pablito.

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